A emergência de movimentos e manifestações sociais no Brasil sem o intermédio de entidades representativas que as organizem, como sindicatos e partidos, vem ocupando a pauta na mídia, nas discussões universitárias e políticas, além de causar um assombro no cotidiano da população. Seja a maior greve docente do ensino superior brasileiro em 2012, a tomada das ruas por uma multidão insurgente a partir de 2013, os movimentos contra a Copa do mundo de futebol e inúmeras greves em 2014 : a multidão insurge e se rebela contra as relações de poder instituídas, contra a precarização do trabalho e contra o Governo e o Estado em novas formas de organização e de atuação política.
A grande greve no ensino superior federal de 2012 foi realizada por milhares de docentes espalhados pelo país sem o apoio dos sindicatos instituídos ; em realidade contou com o boicote de muitos destes sindicatos, seja no nível de algumas associações docentes locais, ou nacionais, tal como o Proifes – Federação de Sindicatos de Professores de Instituições de Ensino Superior, associação reconhecidamente de apoio às práticas do Governo. As manifestações de rua que se iniciaram em maio-junho de 2013 foram duramente reprimidas pelos aparatos repressivos do Estado. No entanto, tal repressão funcionou como um barril de pólvora, que fez com que estourasse em dezenas de municípios do país. Os jovens, com ou sem ideologia política, e os Black blocs que tomaram as ruas de assalto, fizeram os tradicionais militantes de esquerda tremerem, por embaralharem os códigos sobre o que é a atuação e a organização políticas. Agenciada tal como um rizoma, sem líderes, partidos ou representantes, o movimento dessas multidões impactou pela abertura à indeterminação e incerteza, instaurando outros regimes de práticas políticas. Tais práticas perduram em 2014 com a multiplicação de manifestações e greves que paralisam os grandes centros urbanos e os movimentos contra o que anteriormente seria fonte de orgulho nacionalista : as manifestações contra os megaeventos.
Deste modo, neste artigo pretendemos discutir esta outra forma de agenciamento político que emerge e que qualificamos aqui como a política nômade. Entretanto, não serão investigados estes movimentos contemporâneos, mas sim outro movimento radical de luta contra o Estado, que ocorreu há mais de quarenta anos atrás : a guerrilha armada contra a ditadura civil-militar brasileira. Portanto, nosso objetivo é conhecer o relato de ex-guerrilheiros sobre suas participações políticas, para discutir a emergência de uma forma de atuação política que chamamos de política nômade.
Foram entrevistados quatro ex-guerrilheiros brasileiros no ano de 2008 na cidade de São Paulo/Brasil. As entrevistas foram realizadas na modalidade não diretiva, para que cada participante pudesse associar as experiências que lhe fossem mais significativas (Bleger, 1980), diminuindo assim o direcionamento prévio do pesquisador. Fizemos uma pergunta geral sobre suas participações na guerrilha e como analisam o cenário político atual brasileiro. Por uma questão de sigilo não identificamos os entrevistados por seus nomes, mas por suas ocupações profissionais. Denominamo-nos de Deputado, Fotógrafo, Jornalista e Economista. Todos participaram da luta armada contra o Estado, em organizações como a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares – VAR-P, Vanguarda Popular Revolucionária – VPR e Partido Comunista do Brasil – PCdoB. Este agenciamento que denominamos de política nômade foi mais encontrado no relato de dois ex-guerrilheiros, Fotógrafo e Jornalista, em contrapartida a outros dois discursos que encontramos e denominamos de tecnopolítica (Hur, 2013a) e estratopolítica (Hur, 2014) em estudos anteriores.
A reflexão e análise dos fragmentos foi realizada a partir de alguns conceitos desenvolvidos na obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari conhecida como Esquizoanálise. Ressalta-se que o foco de investigação deste artigo não é a experiência guerrilheira em si, mas sim a discussão do agenciamento político que caracterizamos como a política nômade1. Nosso percurso metodológico seguiu as proposições sobre o método cartográfico (Rolnik, 1989 ; Passos, Kastrup & Escossia, 2010), de linhas que se traçam, e ao se delinear, produzem regimes de visibilidade. Barros e Kastrup (2010) afirmam que “a pesquisa cartográfica consiste no acompanhamento de processos (...)” (p.53), numa perspectiva construtivista, em que se busca “desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente” (p.57). Então, a partir da cartografia de fragmentos dos discursos dos entrevistados e do referencial teórico utilizado chegamos à elaboração da concepção da política nômade. Neste artigo ela será caracterizada, entre outros fatores, enquanto desterritorialização e crítica aos estratos e ao Estado.
1. A guerrilha armada contra a ditadura militar
O golpe e tomada de poder do Estado brasileiro pelos militares se deu em 1964, com a justificativa de ser uma medida preventiva contra o risco de uma revolução comunista, que seria orquestrada pelo então presidente João Goulart e pelo Partido Comunista Brasileiro – PCB (Skidmore, 1998). No entanto, essa questão “preventiva” foi utilizada apenas como justificativa para a tomada do poder. No país não havia condições de realizar uma revolução comunista e tal ato operou-se pela manutenção das relações instituídas de poder. A diferença é que houve a troca de uma tecnologia de poder sobre outra : a troca do populismo pelo militarismo. Como o populismo se apresentava ineficiente na gestão da sociedade (Gorender, 1998), as classes dominantes, agenciadas num conluio civil-militar, resolveram manter seu poder através da tomada explícita do poder do Estado, operando através da força e repressão direta, regulamentadas pelos dispositivos dos Atos Institucionais. Na transição do populismo ao militarismo constituiu-se assim um estado de exceção em que os movimentos sociais foram quase aniquilados.
Os movimentos e partidos de oposição não esboçaram resistência frente ao golpe militar. Entretanto, alguns setores insurgiram-se frente às práticas pacifistas do PCB, defendendo postura mais radical na luta contra o Estado, aderindo assim à luta armada. A esquerda política brasileira dividiu-se, apresentando um conflito de estratégias entre a via pacífica e a via armada. Esta tensão não estava localizada apenas dentro do partido, mas também em diversas organizações que apareceram no cenário político nacional. Inúmeros livros e artigos detalham as histórias do surgimento da guerrilha armada e suas diversas organizações na luta contra a ditadura militar (Gorender, 1998; Reis Filho, 1990, Mir, 1994; Ridenti, 1993; Sales, 2007, Hur, 2013b; etc.). Defende-se que o surgimento das organizações de guerrilha expressou-se como uma nova prática frente à política institucionalizada, que na época dependia das decisões centralizadas do comitê central do Partido. Em sua emergência, setores de dentro e fora do PCB, insurgiram-se frente às práticas instituídas e num movimento centrífugo, a partir das bordas, constituíram dezenas de agrupamentos para lutar contra a ditadura militar. Portanto já se percebe aí um movimento contrário ao sedentarismo do partido, que age de forma centrípeta, para um movimento nômade, centrífugo, destes coletivos armados. Duas importantes organizações que surgiram do PCB foram a Ação Libertadora Nacional – ALN - e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário – PCBR.
As peças do jogo estavam na mesa. Por um lado, constituiu-se um diversificado quadro de diferentes organizações de esquerda que lutavam pela transformação do país, pela via armada ou pela via pacífica, através do trabalho de conscientização das massas. Do outro lado, o Governo militar aprimorava seus meios de controle e repressão através de sua polícia política e serviços de inteligência (Fico, 2001), perseguindo e reprimindo os movimentos sociais. O regime militar se aparelhou, sofisticando seus mecanismos de repressão para obter informações e reprimir a guerrilha. A Operação Bandeirantes – OBAN – foi a primeira organização de repressão violenta direta e tinha como objetivo integrar as ações das três forças armadas, da polícia federal e das polícias estaduais. Em 1970 foi criado o DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, diretamente ligado à OBAN, que passou a ocupar o primeiro lugar no quesito da repressão política (Nercesian, 2006).
2. A política nômade
Um primeiro aspecto constatado no surgimento das organizações guerrilheiras foi um movimento centrífugo, frente ao funcionamento centrípeto dos partidos. Há um movimento que traça linhas de fuga, vetores direcionados para fora, ao invés das práticas centrípetas que direcionam as ações para o centro, a diretoria executiva, do partido. Consideramos que há uma prática política que se caracteriza por um agenciamento fugidio, fluido, que atua na primazia dos movimentos e dos deslocamentos, numa ação mais autônoma, fluida e molecular. Por considerá-lo semelhante aos movimentos de deslocamento dos nômades, denominamos esse agenciamento de política nômade.
O deslocamento nos movimentos é explicado por práticas, em prol de mudanças nas ações políticas, ao invés do investimento nos estratos; desloca-se antes por ações do que por instituições, havendo assim narrativas sobre os movimentos de desterritorialização. O desprendimento é algo constante nesse agenciamento, como por exemplo, o movimento de Deputado, que afirmou que estava aberto ao mundo nos seus deslocamentos, que o levou à militância política (Deputado, 139-1452) ; ou mesmo Economista (130-139), que abriu mão de uma vida estabilizada na Europa, para voltar ao país para pegar em armas contra a ditadura.
Constata-se o mesmo no percurso da constituição da Vanguarda Popular Revolucionária - VPR. Fotógrafo relatou que as teses de Régis Debray (1967) sobre a luta armada foram de grande importância para sua organização, muito mais do que disputas internas pelo poder: “Então nós, baseados nessa tese, rachamos e automaticamente o grupo da POLOP - Política Operária - rachou e juntou com militares cassados em 1964, o Movimento Nacionalista Revolucionário - MNR. Então juntos, os dissidentes da POLOP com o MNR, nós fundamos a VPR. E foi quando a luta armada pegou em nossa organização” (Fotógrafo, 218-221). Compreende-se que a operação citada em seu relato, baseada em ações e práticas instituintes, é distinta das práticas totalizantes do Partido, que mesmo no dissenso busca manter sua coesão, pois sua estrutura ocupa a centralidade. Aqui se adota um movimento de fuga para fundar novo estrato para possibilitar novas ações. Então consideramos que na política nômade os deslocamentos se dão em decorrência de movimentos, ações e afecções, e não pela priorização da manutenção de uma estrutura organizada. A luta política é motivada por práticas, idéias e experimentos para tentar concretizar projetos e não prioritariamente para ocupar uma estrutura sedentarizada e seus lugares de poder. Tal processo é correlato ao nomadismo descrito por Deleuze : “(...) mas, na periferia, as comunidades entram noutra espécie de aventura, numa outra espécie de unidade desta vez nomádica, numa máquina de guerra nômade, e se descodificam em vez de se deixarem sobrecodificar. Grupos inteiros que partem, que nomadizam” (1985, p. 65).
Portanto, neste agenciamento há movimentos de deslocamento e de fuga das grandes organizações e das totalizações, em que os estratos não são continentes do desejo. Jornalista nos traz um exemplo de um movimento de desfiliação ao grande estrato comunista, o Império Soviético, quando nos conta a elaboração de uma das plataformas políticas da VPR :
(...) mas de original mesmo só tinha a política internacional. Eu tinha já muitas leituras assim anti-stalinistas, então fiz uma proposta colocando União Soviética e Estados Unidos como duas potências com interesses próprios e distintos da Revolução Brasileira ; ninguém da esquerda tinha ido tão longe (Jornalista, 335-338). O primeiro programa da esquerda que rompeu totalmente com a União Soviética como país revolucionário, considerando-a apenas uma burocracia egoísta (Jornalista, 343-345).
Tal movimento de desfiliação pode ser encarado como um movimento de descolamento do grande “significante”, União Soviética, codificador das práticas políticas da esquerda internacional, para a assunção de um projeto próprio, calcado nas características do imaginário de transformação social referidas à realidade singular do contexto brasileiro. Esse movimento de fuga, da política nômade, é encontrado na fala de Fotógrafo, que de certa forma “positiva” as relações de desfiliação e cisão ao nos contar a divisão da POLOP : “Aí a gente começou a discutir isso e a organização rachou, porque toda esquerda que se preze racha ; nós rachamos” (Fotógrafo, 211-212). Outro exemplo de desfiliação é a rememoração de Jornalista sobre ter sido um dos protagonistas do rompimento da VAR-P, o qual considerou um dos fatos mais marcantes de sua participação política na luta armada. “Olha, sei lá, acho que o mais importante de tudo foi ter participado da cisão” (Jornalista, 385).
Dessa forma, na política nômade valoriza-se os movimentos de desfiliação das estruturas instituídas, correspondendo aos movimentos de desterritorialização, pois se abandona o território instituído habitado em detrimento de novos territórios a se traçar, fazendo os fluxos fluir. Há uma valorização da ruptura, do movimento e das práticas instituintes que se configuram como deslocamentos e linhas de fuga, que partem das bordas, dotadas de uma agitação e movimentação relativa ao que Guattari (1987) chama de dimensão molecular. Por se calcar no movimento, entendemos que está mais próximo dos fluxos do que dos estratos, da lógica do devir do que da lógica do ser ou do saber, do que é instituinte do que é instituído, da desterritorialização do que da (re)territorialização, das forças centrífugas ao invés das centrípetas, das linhas de fuga ao invés das linhas de segmentaridade rígida (Deleuze & Guattari, 1996), enfim, da lógica dos nômades ao invés dos sedentários (Deleuze & Guattari, 1997). Para o nômade “é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 53). Portanto, a política nômade está comprometida com o movimento e com a utopia ativa (Deleuze & Guattari, 1995) e não com os pontos de parada e o topos de poder ; se colocarmos em termos da Análise Institucional (Baremblitt, 2002), a partir de exemplos de figuras históricas cubanas, estaria muito mais próximo de um efeito-Che Guevara do que de um efeito-Fidel Castro3.
Então a política nômade pode ser encarada como o “antípoda” da política tradicional, como uma prática política “minoritária”, de minorias. Pois se refere mais ao âmbito das agitações, do molecular, do movimento das maltas e das multidões, do que a fixação em posições na estrutura instituída de poder, que é o movimento majoritário. Enquanto a estrutura política tradicional prioriza os estratos, os lugares de poder e a ocorrência de uma força centrípeta, a política nômade faz fluir e fugir os fluxos que passam nesses canais, entre esses estratos, numa força centrífuga, em que dependendo da intensidade e pressão, pode fazer ruir e fissurar a estrutura instituída ; como a criação de uma dissidência dentro da Organização. “O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota com sua máquina administrativa ; a unidade nomádica extrínseca se opõe à unidade despótica intrínseca” (Deleuze, 1985, p. 65). Portanto, na política nômade temos movimentos de desterritorialização, de desfiliação, de busca de autonomia e independência, o que pode implicar no movimento que Dumézil (1971) chama de “traição” do guerreiro. Portanto, o estrato não é o fim, é apenas o espaço onde se desloca, onde se faz correr, mas não onde se fixa. “A terra deixa de ser terra, e tende a tornar-se simples solo ou suporte” (Deleuze & Guattari, 1997, p. 53). A incidência do agenciamento da política nômade nas entrevistas realizadas foi pouco freqüente se compararmos com as concepções políticas tradicionais, mas não é por isso que é menos importante, ou que pode ser desprezada : é um discurso menor.
Os trabalhos da memória são traçados via trânsito pelos estratos, movimento que implica em uma série de rupturas com as antigas práticas e a afirmação de uma postura autônoma, muitas vezes, numa prática desde o lado de fora. As trajetórias de Jornalista e Fotógrafo em relação à luta armada foram de rupturas, em que o primeiro se considerou abandonado e usado como bode expiatório pelos seus ex-companheiros na prisão (Jornalista, 579-590) e o segundo decidiu partir para o exílio, afastando-se também pouco a pouco do movimento dos exilados. Desde esse acontecimento, Jornalista se afastou dos movimentos organizados de esquerda, retornando apenas recentemente à mídia, impulsionado pela publicação de seu livro. Já Fotógrafo militou no PT quando retornou do exílio, mas desfiliou-se posteriormente. Não se manteve as filiações aos movimentos e grupos políticos na transição da ditadura à redemocratização do país ; a política nômade atua por rupturas, cisões e deslocamentos.
3. O imaginário de transformação social
A política nômade adota uma postura de intensa crítica ao que é estático, portanto à fixação às estruturas de poder e ao próprio caráter de conservação do Estado. Assume um funcionamento muito mais semelhante a uma máquina de guerra, ao invés de um Aparelho de Captura do Estado (Deluze & Guattari, 1997 ; Hur, 2012). Deste modo posiciona-se contra as práticas de Estado, bem como não visualiza a possibilidade da transformação social a partir destas estruturas instituídas. Sustenta uma luta contra o Estado, seja no período da ditadura civil-militar, ou em tempos atuais em que se tem um partido de esquerda, o Partido dos Trabalhadores – PT, gerindo o Governo do país.
O caso do PT é emblemático. Tinha um discurso de transformação social antes de assumir o poder do Estado. Mas para se manter no estrato estatal entrou num esquema de negociação com os setores conservadores das elites civis, que acabou por alterar seu discurso e práticas políticas, imprimindo a mesma lógica neoliberal instituída na política brasileira. Os relatos pautados nesse agenciamento consideram que o antigo maior representante da esquerda está num movimento muito maior de conservação, de manutenção do status quo, do que de transformação. Então a política nômade tece inúmeras críticas em relação ao giro à direita do PT, expressas nos relatos de Jornalista e de Fotógrafo, em que o primeiro as traz mais do ponto de vista econômico e político-institucional e o segundo do ponto de vista ético, em relação às práticas de corrupção do partido.
Nesta perspectiva não se concebe as práticas do PT no poder do Estado como uma possível construção da transformação social, ou uma revolução processual, tal como defende o discurso oficial instituído. Quando perguntado sobre isso, Jornalista afirma que o PT no poder imprime a mesma lógica neoliberal de outrora : “Outro princípio é de que, num governo, o principal é política econômica. A nossa é neoliberal, é totalmente inserida no Capitalismo globalizado, então, para mim, o Governo Lula4 é um governo burguês na essência e com algumas tinturas esquerdistas nas perfumarias” (Jornalista, 715-718). Essa é uma crítica muito semelhante ao do filósofo Deleuze (1994), que afirma que não há Estado de esquerda, no máximo um Estado permeável a algumas demandas da esquerda. Dessa forma, compreende-se que a esquerda no poder do Estado não está trazendo nenhum aspecto novo na gestão social que traga alguma transformação social. E ainda afirma-se : “Eu acho que eles apenas estão camuflando a dominação burguesa. Os bancos nunca lucraram tanto, nunca anunciaram tantos recordes de faturamento. Existem vários artigos e estudos que comprovam que nunca os bancos foram tão beneficiados. A coisa mais emblemática e mais sórdida do Capitalismo pós-industrial: o parasitismo do setor bancário. O Capital financeiro é o grande beneficiário do Governo Lula” (Jornalista, 735-739). Portanto, denuncia-se que as práticas estatais passam a ser norteadas pela axiomática do Capital (Deleuze & Guattari), em que o capitalismo passa a ser a grande referência de atuação na gestão social, mesmo que seja por um partido de esquerda.
Esse agenciamento, enquanto inimigo dos estratos, tece críticas à estratificação de alguns militantes de esquerda na estrutura institucional, que se acomodaram aos seus cargos políticos. Fotógrafo já percebia sinais dessa conduta no período da guerrilha, quando alguns militantes não arrumavam emprego para constituir uma fachada legal e se acomodavam com o salário da Organização (Fotógrafo, 446-447). Para ele, este fato “(...) explica muito bem o que acontece hoje no Aparelho do Estado” (Fotógrafo, 443-444), pois “(...) eu senti e vi que tinha muitos companheiros, principalmente de origem humilde, que para eles terem caído na clandestinidade ou não, sendo militantes profissionais, eles tinham uma garantia ao problema do desemprego. O cara era militante profissional, tinha o emprego garantido, estava protegido pela revolução” (Fotógrafo, 444-448). Então, critica-se a conduta de um certo comodismo em fazer da luta política um meio de subsistência econômica, tanto no período da luta guerrilheira contra a ditadura, como nos tempos atuais.
Outro alvo de crítica deste agenciamento é o uso dos aparelhos de repressão e de inteligência do Estado, que o governo foi acusado de utilizar para fins próprios, ferindo assim direitos constitucionais e constituindo o que considera ser um Estado policial. Jornalista relata o caso da investigação sobre um banqueiro :
(...) eu nunca vou achar que Agência Brasileira de Inteligência – ABIN e Polícia Federal possam servir à Revolução, para mim isso é repressão. ABIN e Polícia Federal são repressão, então eu não sou a favor de banqueiros como Daniel Dantas, mas também não sou a favor da repressão. Não tenho partido nenhum a tomar, só não quero que esses caras detonem direitos constitucionais. Acho que a gente tem que manter o máximo de liberdade, máximo de respiradouro e não favorecer a caminhada para o Estado policial. Eu acredito que o Estado policial vai acabar sendo sempre de direita, mesmo que quem dê a partida seja o pessoal de esquerda (Jornalista, 708-715).
Essa crítica ataca algumas práticas do governo, que ao ocupar o aparelho estatal procura utilizá-lo em benefício próprio, inclusive adotando práticas consideradas anticonstitucionais. Outra crítica contra a estratificação dos elementos na estrutura estatal é a que se conhece como crítica ao personalismo. Esta é uma crítica que a esquerda historicamente chama de culto à personalidade, mas que recaiu nisso muitas vezes, seja no culto à personalidade de Stalin, Mao Tsé-tung, Fidel Castro, etc., ou de novas lideranças institucionais, carismáticas. Jornalista sustenta que há um processo personalista ocorrendo, em que alguns atores políticos querem se colocar nesse lugar, encobrindo interesses pessoais com a máscara da esquerda política : “Para mim eles abandonaram o projeto político partindo para o projeto pessoal, só que por força de serem pessoas brilhantes, apresentam projeto pessoal como projeto político. Mas na verdade eu não diria que essas pessoas hoje são revolucionárias. Acho que apenas tem uma retórica revolucionária a suas ambições pessoais” (Jornalista, 756-759). Deste modo, denuncia-se que há sujeitos políticos que querem se fixar em lugares de poder utilizando ideais de esquerda e “revolucionários” com fins eleitorais pessoais. Ou seja, tais ideais servem como justificação para o advento e a manutenção de lugares de poder dentro da estrutura instituída. Então a crítica à esquerda no poder se dá por ela se implicar muito mais com as posições na estrutura, na tomada e na manutenção do poder, do que com a transformação social, abandonando-se assim os antigos projetos defendidos.
Dessa forma a política nômade ataca a lógica do Estado, criticando a lógica da política tradicional, em que grupos fixam-se nos estratos para manter os lugares de poder institucional, chegando até a utilizar práticas de corrupção. O trecho abaixo resume alguns atos de improbidade do PT no poder, bem como a defesa a políticos corruptos de partidos que fazem parte de sua base aliada. A perspectiva de Fotógrafo sobre como vê a tomada do poder por pessoas que tinham longa trajetória de esquerda se assemelha à história do livro “A Revolução dos Bichos” de George Orwell (1975), em que todo mundo no poder se torna igual, mas igual num mau sentido...
Eu ainda não acredito no que acontece. O escândalo do dossiê, cair na arapuca, cair na armadilha que o Serra montou, comprar um dossiê de dois bandidos que estavam com processo na Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI, um dossiê do Serra e os caras vão lá e são pegos em flagra. É muita burrice, é muita burrice. Um ministro como o Palocci, vai quebrar o sigilo bancário de um jardineiro ! Olha que coisa, que falcatrua, esse negócio do mensalão, e o pior que é tudo verdade, estou fora. Limparam a barra do Renan Calheiros, limparam a barra do Maluf aqui em São Paulo, a Dona Marta limpou a barra do Maluf. Essa semana só o Lula falou bem do Severino, do Renan e não sei quem mais. Virou a história, todo mundo é igual... (Fotógrafo, 751-758).
Esse fragmento revela a grande desilusão desse ex-guerrilheiro com a esquerda no poder, que para se manter no estrato estatal compactuou com tais práticas condenáveis, freqüentes na política brasileira. A esquerda no Estado não sofreu apenas um aburguesamento, uma oligarquização das minorias dirigentes, como o cientista político R. Michels (1982) bem descreve, mas passou a reproduzir práticas anti-éticas.
Essa perspectiva corrobora com as construções teóricas de Przeworski (1991) e Deleuze e Guattari (1997) de que pode haver uma captura dos princípios políticos de esquerda frente à lógica do Estado, a captura das práticas políticas por um tipo de funcionamento que prioriza a manutenção do poder e se sobrepõe às questões de ordem ética. Então, compreendemos que para a política nômade a possibilidade da efetuação de uma transformação social a partir do Estado é muito remota. Principalmente se for levado em consideração : os problemas em relação à utilização de práticas políticas não transformadoras, a manutenção de uma gestão político-econômica neoliberal, a utilização de um discurso social para fins eleitorais, a sobreposição de projetos pessoais em relação aos projetos político-coletivos, a constituição de um Estado policial e a reprodução de práticas de corrupção.
Mas então, qual seria o modelo de transformação social da política nômade ? Talvez não tenha fórmulas prontas, mas algumas direções gerais e abertas como :
Acho importante poder contribuir para a reconstrução da esquerda, mas uma esquerda ética, de mãos limpas e com posições compatíveis com os desafios de nossa época, do século XXI. Sabe, não é nem ficar endossando seqüestrador serial das FARC, coisas atrasadas, e nem também esse negócio de você achar que conquistando o Governo, conquistando o poder, faz a Revolução de cima para baixo ; eu descreio de tudo isso. Acho que você tem que trilhar outros caminhos. Caminhos em que a esquerda tenha compromisso com os Direitos Humanos, a esquerda não pode de maneira nenhuma hoje, no mundo moderno, separar-se de Direitos Humanos, como vem fazendo, justificando desrespeito a habeas corpus, desrespeito de asilo político, grampeamento de telefones, etc. Eu vou brigar até o fim contra essas coisas. Sei lá, acho que hoje eu me defino, sou mais um libertário, estou mais próximo, digamos assim, do anarquismo, do neoanarquismo de 68, Marcuse, tal, do que do stalinismo requentado de muita gente e dessa bobagem de querer fazer a Revolução a partir de Brasília (Jornalista, 718-730).
Portanto a política nômade não pensa a transformação social a partir da tomada do poder do Estado e de relações autocráticas, para Jornalista deve-se manter uma relação com a ética, os direitos humanos e as questões libertárias. Deste modo, refere-se muito menos a uma democracia representativa, do que a uma democracia plural, direta :
(...) então a gente tem que tentar gerar uma nova esquerda com uma visão diferente (...) que você não pode mais fetichizar o poder, acreditar que o poder resolve tudo, você tem que atuar de uma forma consensual dentro da massa, você tem que partir para Revolução horizontal e não de cima para baixo, você tem que respeitar os direitos humanos, respeitar a pluralidade de pensamentos dentro do bloco revolucionário (...) tem de admitir as várias posições existentes no campo revolucionário, discutir e respeitar as pessoas e esse é o caminho. A gente tem que recomeçar daí e não nessa coisa monolítica, nesse negócio como agora ocorre (...) (Jornalista, 780-788).
Deste modo, em relação ao projeto político de esquerda, não se deve privilegiar apenas a via eleitoral-institucional e deve-se atrelar a outros movimentos sociais, capilarizar-se. Deve-se renovar suas pautas, seus discursos e suas práticas, visto que o movimento partidário afastou a esquerda dos movimentos sociais. Então não deve haver uma gestão de cima para baixo, mas sim das multidões. Citamos a proposição do cientista político A. Przeworski, que também traz a necessidade dessa perspectiva ampliada para a esquerda :
O socialismo talvez possa tornar-se possível, mas somente se o movimento pelo socialismo recuperar a abrangência global que caracterizou diversas de suas correntes alheias aos dogmas das Internacionais, apenas sob a condição de que esse movimento deixe de condicionar o projeto socialista à contínua melhora das condições da classe operária. Pode tornar-se possível quando o socialismo novamente se tornar um movimento social, e não exclusivamente econômico, quando aprender com o movimento feminista, quando reassimilar os problemas culturais (Przeworski, 1991, p. 289).
Tal crítica converge com a de René Lourau ao afirmar que : “A dureza dos partidos políticos sugere a curvatura do social por parte da política, a destruição das relações sociais por parte do reino dos partidos, a destruição das representações coletivas por parte da política instituída, a domesticação dos homens por parte da instituição hegemônica dos tempos modernos : o Estado” (1980, p. 45).
Não se sabe a eficácia da política nômade, não se pode prever seus impactos, pois ela está difusa e se realiza no âmbito da abertura política, da experimentação e da criação. Muitas vezes realiza-se em sua expressão, na enunciação do desejo transformador, dos seus devires minoritários, os quais não estão comprometidos a priori com uma tomada do poder. Por isso pensamos que a política nômade se aproxima das reflexões sobre uma micropolítica e uma Revolução molecular para Guattari (1986, 1987), das reflexões de “Mudar o mundo sem tomar o poder” de Holloway (2003) e das práticas políticas horizontalizadas dos zapatistas. Consideramos que responde pelo poder do imaginário e não pelo imaginário do poder, pelo poder do desejo e não pelo desejo do poder. Por exemplo, aqueles que consideram que o maio de 68 francês foi um fracasso por não tomar o poder, ou por constituir-se como uma “ilusão grupal”, tal como o psicanalista Didier Anzieu (1993) sustentou, não entenderam nada de devires, de imaginário e nem de política nômade. O mesmo podemos falar sobre a luta armada brasileira, em relação àqueles que a criticam e a diminuem pela justificativa de que os guerrilheiros apenas queriam tomar o poder e implantar uma ditadura do proletariado. Estes só conseguem analisar a questão em termos de um suposto futuro da revolução, na lógica dos estratos, do estado de coisas, sem conseguir enxergar os devires que os movimentos carregam. Não conseguem apreender o imaginário da transformação social que efervesce nesses acontecimentos, que em muitos casos recusa qualquer estrato, rechaça a dominação, clamando pela autonomia e autogoverno e realizando-se no seu transbordar. Ao focalizar a luta armada através do agenciamento da política nômade, consideramos que o que se passava com a guerrilha corresponda mais a um “devir-revolucionário” do que ao “futuro da revolução”. A um devir transformador, um imaginário de transformação social, ao invés de um projeto concreto da constituição de uma revolução que culminaria numa ditadura do proletariado, ou mesmo na sociedade comunal. A política nômade combate os estratos, tal como, quando Antonin Artaud (1947) vocifera contra o organismo, ao defender a constituição de seu “corpo sem órgãos” (Deleuze & Guattari, 1996).
Podemos pensar que a crítica ao agenciamento tradicional político é o que explica as grandes contradições das revoluções históricas da esquerda. O objetivo escrito de Lenin era pelo fim do Estado, pela destruição dessa Instituição e pela constituição da sociedade comunal. Contudo o que se acompanhou na história foi uma rigidificação da estrutura burocrática do Estado soviético, que não só não o destruiu, como também o fortaleceu, permanecendo uma outra aristocracia no poder : a esquerda burocrática. Crítica convergente com a de Kafka, que considerou ser a Revolução Russa mais a produção de um novo segmento, ao invés de transformação e renovação (Deleuze & Guattari, 1977, p. 86), mais a formação de uma nova burocracia dirigente, ao invés da criação de novos regimes de enunciados políticos. A Revolução se estancou, perdeu sua novidade instituinte e de transformação e se burocratizou em um Estado e dispositivos disciplinares e de controle mais rígidos e totalitários que os de outrora. Conjeturamos que na etapa intermediária da ditadura do proletariado, estabeleceu-se um condensamento entre governante e Aparelho de captura, que atualizou toda a potência dos Estados imperiais-despóticos (Deleuze & Guattari, 1976). Neste processo, o gestor se conecta a essa estrutura, incorpora-se ao poder do Estado e o seu desejo se fixa ao estrato institucional, simbiose governante-Estado (Bleger, 1980), perpetuando-se nesse lugar, em que se representa e é representado como peça fundamental para a efetivação da “Revolução”, como pode-se ver com o que sucedeu na China, Cuba, ex-União Soviética, Coréia do Norte, etc. Essa eternização no poder remonta ao mais antigo funcionamento imperial, em que mesmo a transferência do poder deixa de ser por via eleitoral, por escolha da população dentro do regime, chegando a ser realizada até por questões co-sanguíneas. Como por exemplo, a transferência de poder na Coréia do Norte, que se deu de pai para filho, de Kim Il Sung a Kim Jong Il e agora para Kim Jong Um, um jovem líder com experiência política quase nula. Entendemos que o desejo pela fixação nos lugares de poder possa explicar as contradições e percalços na tentativa de concretização do projeto marxista-leninista, em que os dirigentes das revoluções comunistas se fixaram na etapa da ditadura do proletariado e não chegaram ao objetivo pretendido, não conseguiram transformar o Estado na Comuna e legitimaram a alta hierarquização nos partidos. Condutas que a política nômade visa combater.
4. Considerações finais : a política nômade como Utopia Ativa
Neste artigo consideramos que a política nômade foi um agenciamento bastante presente nas práticas das organizações da luta armada nas décadas de 1960 e 1970, em que não se lutou apenas contra a repressão da ditadura militar, mas também contra a organização estratificada do PCB. Constituiu dissidências e outros modos de ação, como por exemplo, o anarcomilitarismo da ALN (Gorender, 1998). O ex-guerrilheiro “Clemente” exalta que a estrutura de poder proposta e praticada por Marighella era radicalmente horizontal, diferente da liderança de Câmara Ferreira, “o Velho”, que era mais centralizada, mais próxima dos moldes de Partido Comunista (Paz, 1996). Então, é um agenciamento que é crítico aos estratos, à sobrecodificação do Estado, ao mesmo tempo em que foge da axiomática do capital, agindo a partir do primado da desterritorialização.
Citamos ao longo do texto uma série de fragmentos dos relatos dos ex-guerrilheiros que expressam a luta da política nômade contra o Estado. Não se considera que tomar o poder do Estado possa levar à consecução da almejada transformação social, bem como se critica a fixação de atores políticos da esquerda na estrutura de poder estatal. Devido a esses movimentos entendemos que a política nômade é uma política menor (Deleuze & Guattari, 1977, 1997), feita fora dos espaços institucionais, que foge do movimento de captura do Estado, seguindo o projeto da autonomia (Castoriadis, 2002), os movimentos da multidão (Hardt & Negri, 2006) e de uma máquina de guerra (Deleuze & Guattari, 1997).
Este agenciamento que operava e “transbordava” nestes movimentos políticos, também é atualizado hoje, mas com outros regimes de expressão e de visibilidade. Por mais que pareça utópico, invisível, imperceptível, atualiza-se nos movimentos da multidão, das maltas (Canetti, 2005), no movimento de indígenas amazônicos contra a estruturação de um Estado (Clastres, 1988), na luta armada pacífica zapatista que prescinde da conquista do Estado e defende uma transformação molecular da sociedade (Pereyra, 1997 ; Gennari, 2005), posição zapatista que fundamentou as reflexões de Holloway (2003) de crítica à lógica de Estado e de mudar o mundo sem tomar o poder. Entendemos que para Holloway a tentativa de tomar o poder do Estado obedece a uma lógica de fixação ao poder institucional, na qual defende que a luta nesses termos já está perdida, pois reproduz a mesma lógica de dominação do Estado que deve ser combatida.
No cotidiano encontra-se esse agenciamento em alguns movimentos artísticos de intervenção urbana, em alguns coletivos de casas Okupa5, algumas associações culturais alternativas, em alguns segmentos do movimento estudantil, nas atuais manifestações de rua e em movimentos de rebelião, insurgência, insubordinação, ruptura com o instituído, etc. Consideramos que agir a partir da política nômade é a possibilidade de assumir práticas instituintes, de tentar reinventar o cotidiano a partir do imaginário social e de devires ; é atualizar o potencial desterritorializador de uma máquina de guerra. Portanto, a transformação social pode ser feita em qualquer momento, nas pequenas e grandes práticas, nos âmbitos molecular e molar, no cotidiano e no partido, nos planos subjetivo e institucional, desejante e social, e não há uma fórmula pressuposta sobre. Não sabemos se a política nômade um dia agitará tanto os estratos que resultará em grandes transformações molares, ou fomentará a produção do mítico “homem novo”, não temos como prever o futuro. Citamos Deleuze (2006) : é mais uma irrupção de um devir revolucionário do que a preocupação com o futuro da revolução, ou seja, é mais a propagação magmática de fluxos, do que a estratificação de uma estrutura. Consideramos que a política nômade conforma uma Utopia Ativa, no sentido de imaginar um não lugar e tentar construí-lo ; a política nômade é um processo, são devires.
Devido ao caráter mais difuso e de experimentação, compreendemos que a política nômade acolhe com maior entusiasmo a diferença, o múltiplo, enfim, as multiplicidades, sendo arredio aos blocos monolíticos e totalitários de poder. A política nômade é o movimento por excelência, o que está no meio, intermezzo, o que se desloca num espaço entre-dois, obtendo assim um efeito mais dionisíaco que apolíneo, mais hybris que dike. Dessa forma, consideramos que a política nômade está comprometida muito menos com as forças da ordem, organizadas e que reproduzem as estruturas conhecidas e instituídas, do que com as forças demoníacas, caóticas e de criação. Nesse agenciamento o que deve ser explicado não é o desvio, a instabilidade, o instituinte e a insurgência, mas sim o que é norma, a estabilidade e a consonância com o instituído.
Se tal agenciamento pode ser atualizado nas práticas políticas no Estado é outra questão. Talvez por ser tão disruptivo e insurgente implique em rupturas com o estrato institucional, tal como o efeito-Che Guevara em Cuba, ou as organizações de guerrilha em relação ao PCB. Mas consideramos que se for atualizado tal diagrama de relações de forças no Aparelho de Estado, ou em qualquer instituição, numa relação direta entre externo e interno, entre fluxos e estratos, parte da estrutura institucionalizada poderá desterritorializar-se, dando lugar a uma gestão transversalizada, menos burocratizada e hierarquizada. Saindo do personalismo à coletividade, da democracia representativa à democracia direta, da reprodução à experimentação, da identidade à metamorfose e, quem sabe, do amor pelo poder ao poder da transformação. Uma política nômade que combata as práticas sedentarizadas, que esteja comprometida com as demandas dos movimentos sociais e não com as demandas do mercado transnacional e capitalista, o Império, e que sustente uma ética da potência e não a moral da dominação.
1 Vale ressaltar que para as reflexões empreendidas no presente texto preferiu-se utilizar as conceituações originais de Deleuze e Guattari, não se utilizando assim da discussão de comentadores de sua obra, como por exemplo da importante feminista Rosi Braidotti (1994) sobre subjetividade nômade.
2 Os números entre parênteses referem-se às linhas em que determinado fragmento se encontra na entrevista integral de cada entrevistado.
3 Não estamos hierarquizando a importância de um sobre o outro. Para o estabelecimento da Revolução Cubana foi fundamental a figura de poder estratificada do líder Fidel Castro, como para o sonho do “amor revolucionário”, os freqüentes deslocamentos de Che Guevara.
4 Presidente do Brasil entre 2003-2010. Símbolo nacional da luta dos trabalhadores e do PT.
5 Casas abandonadas e que são ocupadas por jovens, que passam a desenvolver atividades culturais, oficinas de diversas espécies, etc., em que muitas se organizam a partir da autogestão.
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